As criaturas vulgares
Se "A Força do Hábito" fosse um quadro de Magritte, teria inscrita a frase: "Isto não é um retrato de artistas". Artistas relutantes, diga-se. Exilados, ambulantes — o público no escuro é reconhecido pelo faro apurado de Garibaldi: em cada cidade, um cheiro diferente. Os artistas odeiam-se entre si, não se entendem, embora precisem uns dos outros, e por isso mesmo. Para tocar em conjunto, para continuarem vivos. Continuando a ensaiar o "Quinteto da Truta".
A vida de todos os mortais precisa de narrativas construídas pelos artistas. E de que se alimentam os artistas para sua sobrevivência, para além do cheiro do público? Doutras artes, doutras práticas que lhes exigem persistência em busca da perfeição. A par dos afectos esquinados pelas ovelhas tresmalhadas da família e das memórias extremas. Dos momentos inesquecíveis, entre a ocasião sublime e o acidente fatal. Provas de vida a cada dia de ensaio, dentro e fora da "pista". Sentidos alerta: um passo em falso, e é a morte do artista. Não desistir do treino e do rigor: cabeças e corpos. Ferrara / fé rara. De terra em terra, de estação a estação, a viagem com esperança no infinitamente difícil, inatingível.
Bento Domingues: "Na utopia, vive a esperança de uma outra sociedade; na esperança, vive a utopia de um outro mundo".
Diz Garibaldi: "A sociedade escorraça de si quem a ameaça" (...) "Não resta senão", diz o mesmo Garibaldi, "entrar com o arco a tocar pela morte dentro"
Entretanto não se fala de produção nem de consumo. Tão só da alma, igual à peça de madeira que une as costas à frente dos instrumentos de corda e que faz ressoar o som. "Toda a palavra é uma invocação", como no teatro! "A arte que se faz nunca mais deixa em paz a cabeça".
Uma homenagem que Thomas Bernhard presta à gente do Teatro, do Circo e da Música, com verrina e ternura. Criaturas (in)vulgares em versão de câmara.
Nuno Carinhas Teatro das Beiras, Covilhã, outubro de 2020