Já passaram quantos anos desde a última vez que falámos, perguntou ele
A par do sugestivo título deste espectáculo e sem perda de sentido, poder-se-ia
apresentar um outro - “EM DEFESA DO PRESENTE E DO FUTURO DA CULTURA
EM PORTUGAL”. Este seria talvez o epíteto que melhor caberia a este espectáculo,
anunciando o estóico feito desta companhia que em plena pandemia não abdica
dos seus objectivos e responsabilidades na labuta pelo presente e futuro da
cultura neste país. Um presente construído e enraizado no passado. Um passado
que se inspira nos três mil anos de teatro que o homem tem sabido defender
apesar da ameaça constante de um fim que se aproxima para o teatro e o mundo.
Não obstante, o planeta redondo roda e vive. Também este “nosso” teatro tem no
seu passado o ADN de uma inabalável resistência que se alimenta de paixão e
sentido de missão de serviço público.
O número 2 da Travessa da Trapa é porta de entrada para um exercício de reflexão
no contacto com um passado que faz luz sobre os mais distintos fazedores desta
arte milenar, “reconstruindo” um teatro que, apesar de todas as vicissitudes,
resiste no combate que lhe é proposto. Inspira-se nesse passado e com ele municia
o presente. Um combate pela vida, com paixão e destino partilhado, num exercício
pleno de objectivo e sentido de futuro.
Há 3000 anos na Antiguidade Clássica entre rituais e outras representações
teatralizadas, sob o olhar intrigado dos poderes de Atenas e mais tarde os de Roma,Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, Plauto e Terêncio, entre muitos outros,elegeram o teatro como arte de comunicação pública, mostrada em majestosos
anfiteatros, tribunas de expiação catártica em que ora chorava as derrotas,
ora celebrava as vitórias. Eram sobretudo espaços de reunião e comunhão de
valores em favor do Homem e dos seus desígnios. A Idade Média, o apagão. No
Renascimento, com o espartilho censório para as artes e os artistas, a Inquisição
dava o mote: fogueira com eles.
Entretanto, o teatro teima na sua persistente prova de vida. Ainda próximo de
nós, a pouco mais que algumas dezenas de anos, na Alemanha dos anos trinta de
Séc. XX, os teatros foram os primeiros lugares públicos a ser vandalizados,
assaltados e destruídos pelos movimentos de ideologia fascista e braço levantado,
saudando o ódio e o horror. Em Itália, berço de tanto teatro, a ideologia fascista
perseguiu os artistas, autores e actores, e a cultura que não fosse estímulo à
“nova” ordem social instalada. Ainda nos anos trinta do passado século XX, o
general Queipo de Llano (que mandou fuzilar o poeta García Lorca), comandante
das tropas na Andaluzia em favor da sublevação fascista dirigida por Franco,
gritava: - “quando me falam de cultura, puxo da pistola” e soltava ainda esse
“urro” de horror e ódio implacável: “Viva la muerte”. O nosso velho “estado novo”
que vigorou meio século nesta terra, entre muitas atrocidades incivilizadas e
persecutórias, nunca permitiu o desenvolvimento das artes e do teatro como
uma escola para o povo e uma forma de edificar e dignificar uma prática artística
atenta às necessidades intelectuais da sociedade de então. Uma sociedade que
definhava, apagando a luz da memória de Gil Vicente ou Almeida Garrett, entre
outros, há muito adormecidos nas estantes institucionais. Longe das escolas onde
se censuravam e arrancavam as páginas do Canto X e outros “cantos” de Camões,
e tudo o que não enaltecesse “a vã glória de mandar”, às ordens de um tutor
censório que apenas concebia o teatro como um mero exercício de entretenimento
bacoco e estupidificado. Os mesmos de sempre, de braço levantado e dentes
arreganhados, prontos para o ataque e logo que lhes seja possível desancar nos
teatros e espaços de cultura recuperados pela democracia conquistada em 1974.
Hoje para as “massas” é servida a TV aos fins-de-semana e nos outros dias
também. Valha-nos o p da nossa solidão.
Por muitas razões saudamos neste dia 19 de Abril de 2021 a reabertura do nosso
auditório, com a consciência de estarmos no lugar certo, um lugar de denúncia de
injustiças e sobretudo uma trincheira de defesa dos valores humanos e solidários
que permanecem vivos na memória de todos os que se erguem dia após dia - “EM
DEFESA DO PRESENTE E DO FUTURO DA CULTURA EM PORTUGAL”.
Gil Salgueiro Nave