Nosocómico*
De tempos a tempos, somos surpreendidos com alguém que se faz passar por
médico. Surpreende-nos o descaramento, a “perícia” e a capacidade de enganar
toda a gente, mas choca-nos que se possa brincar assim com a saúde dos outros.
No Teatro, por exemplo, podemos matar ou fazer adoecer qualquer pessoa,
sem que isso tenha algum mal. Pelo contrário, até pode provocar salutares
gargalhadas, como é o caso de Molière. Na Medicina, não. As pessoas podem
realmente adoecer e morrer.
Também há falsos engenheiros, falsos advogados, falsos padres, com falsos
diplomas, mas isso, estranhamente, não nos choca tanto. Há gente que chega
mesmo a votar neles. Mas, como diz Esganarelo neste espetáculo, médico é mais
do que um estatuto, é uma missão.
No tempo de Molière, também houve a peste, a pandemia da época. Molière
satirizava os médicos e teria razões para isso. Nós, hoje, agradecemos aos médicos
e à Ciência que nos dão mais e melhor vida. Hoje, os médicos são diferentes. São
melhores.
A unir as duas épocas, fica o humor eterno daquele homem do teatro, a lembrar- -nos que a melhor terapia para todas as doenças é a Comédia.
Este espetáculo partiu de dois dos primeiros textos de Molière: “Médecin Volant”
(Médico Volante) e “La Jalousie du Barbouillé” (A Ciumeira do Enjoado). Já neles
se nota o enorme talento que veio a consagrar o Mestre: um humor feito de
irreverência, de quebra de preconceitos, de crítica social desbragada, sem filtros,
sem auto-censura. Por isso, foi um quebra-cabeças dramatúrgico resolvido com
prazer.
Que me lembre, é a oitava encenação minha no Gicc-Teatro das Beiras. Quer dizer
que já não se trata de amizade, mas de cumplicidade. Digo cumplicidade porque
Teatro é um crime premeditado, cometido em grupo. O veredicto é do público,
mas até lá, somos todos presumidos inocentes. Espero que o público seja também
ele nosso cúmplice ou, pelo menos benevolente.
José Carretas